Por que Claymore é tão bom?

O que faz a história dessas guerreiras ser tão diferente do que se costuma ver em mangás e animes de ação?

Erick Lúdico
13 min readJun 4, 2022

De repente, estou aqui falando de anime e mangá. Esse é um dos assuntos que me faz pensar que ser “otaku é uma bênção”. Mas eu sou tão otaku assim? É cada vez mais difícil assistir um anime, e isso já tem um tempo. Na época que ia aos eventos me achava meio descolado, apesar de ter feito um “cospobre”.

Só que, eu tenho uma tatuagem de um mangá né? Então, brinco que não adiantaria nenhum argumento negando que sou otaku. Essa tatuagem, inclusive, sempre foi a primeira ideia que tive quando decidi marcar meu corpo.

Por que eu tatuei a Teresa, Galatea, Miria e Clare? É porque Claymore mudou minha vida.

Faz 10 anos que conheci Claymore, quando assisti o anime pela primeira vez. Já deu para perceber que é uma obra que me marcou bastante. Aproveito, portanto, esse marco pessoal para escrever um texto, uma oportunidade para recomendar essa obra como um todo.

Não vou dar spoiler, mas vou entrar um pouquinho na história para contextualizar tanto o anime quanto o mangá, ok? Então vamos lá seguir o texto.

O que é Claymore?

O primeiro capítulo de Claymore foi lançado em 2001, pelo autor Norihiro Yagi. Em abril de 2007 foi ao ar o anime produzido pelo estúdio Madhouse, que animou Death Note, Perfect Blue, Paprika, ele é bem-conceituado.

O mangá foi lançado até 2014, ele possui 155 capítulos com 27 volumes. O anime conta com 26 episódios. A principal diferença entre as duas mídias é que o anime teve que “inventar” um final, pois a história do mangá estava na metade na época. Diante disso, a animação tem um desfecho que, vendo pelo mangá, não faz muito sentido, e é um dos motivos que até agora não houve uma continuação direta para adaptação de 2007.

Capa do volume 1 de Claymore.

Claymore se passa em um mundo medieval, não tem nenhum elemento da cultura japonesa em sua ambientação. Nesse mundo, os seres humanos são ameaçados por “yomas”, monstros mutantes que devoram as pessoas. A responsabilidade de derrota-los são das “claymores”. Elas são guerreiras, seres humanos misturados com “yomas”. O nome que elas possuem é dado por essa grande espada de duas mãos que carregam.

Elas são frias, não demonstram muita emoção, apenas cumprem seu trabalho de matar os yomas. Não há uma simpatia por elas, por onde passam geram um temor, possuem a alcunha de “bruxa dos olhos de prata”, pela cor de seus olhos. Quem conhece The Witcher, é um pouco parecido com a forma que o Geralt é visto pela sociedade.

O lance é que, diferente da obra polonesa, as claymores não recebem o dinheiro de um vilarejo que prestam serviço. A guerreira vai embora e surge um tiozinho misterioso para receber o pagamento do trabalho que elas fizeram. Há uma organização por detrás dessas guerreiras.

Mas se o vilarejo decidir dar calote? Aí seria pior do que ficar devendo um agiota. As consequências de não pagar o serviço de matar um yoma são terríveis. Isso é algo que ajuda em nada em melhorar a visão a respeito das claymores.

Claymore matando um yoma

O mundo em que se passa a trama é uma ilha. Ela é dividida em 47 distritos, cada um sob o cuidado de uma guerreira. As claymores são ranqueadas, a número 1 é a mais forte e a 47 é mais fraca.

Elas podem emanar uma energia chamada de “yoki”, funciona como se fosse o chakra do Naruto, o ki do Dragon Ball. Quanto mais as guerreias usam o yoki, seus olhos vão mudando de cor e suas faces vão se deformando, aproximando da aparência de um yoma. Com muito yoki liberado, elas perdem o controle, assumindo a forma de um novo ser despertado. Essa criatura é mais forte e inteligente que os yomas vistos normalmente, possuem o nome de “despertados”, também é comum vê-los descritos como “kakuseisha”.

Esses seres despertados naturalmente se tornam uma grande ameaça. Durante Claymore, temos o conhecimento de que alguns deles dominam territórios e constroem exércitos. Um dos motivos da organização, com o passar do tempo, ter preferido criar guerreiras mulheres ao invés de homens, é que eles são mais suscetíveis a descontrolar o uso de yoki. A sensação de despertar é descrita como ser algo parecido com um orgasmo.

Despertados

Claymore apresenta seus conceitos de uma maneira bem claro, gosto de como as regras desse mundo são simples e vão se dinamizando através dos personagens e acontecimentos da trama. Em certos pontos elas são subvertidas, não é nada de genial narrativamente, talvez você até possa antecipar algumas revelações importantes, mas, não deixa de ser legal notar um conceito que pareça básico escalonando para grandes eventos.

Claymore costuma ser bastante comparado com Berserk, obra do saudoso Kentaro Miura. As semelhanças vêm muito de ser ambientado em um mundo medieval, de as guerreiras carregarem uma grande espada e a presença de criaturas grotescas que perturbam, também sendo intrigantes. É comum ver Claymore ser descrito como “Berserk de saia”, mas é um reducionismo preguiçoso. Assim que se começa a ler o mangá ou assistir o anime, dá para notar a autenticidade de sua trama, a personalidade de seu mundo, como de suas características estéticas.

Tendo falado todo o conceito de Claymore, vamos falar do que realmente se trata o seu enredo.

Qual é a história de Claymore?

A protagonista se chama Clare. Pela maior parte do tempo, vemos esse mundo sob a perspectiva dela.

Em uma vila, Clare salva a vida de um garoto, cuja família havia sido morta por um yoma. Ele se chama Raki e, influenciado por esse desamparo, acaba se interessando pela sua salvadora, seguindo seus passos. Mas a guerreira, até por estar centrada em seu trabalho, dá pouca bola para ele. Porém, aos poucos, Clare deixa que o garoto a acompanhe. Esse comportamento da protagonista é estranho a princípio, diante do que nos foi apresentado sobre as claymores.

Nos primeiros episódios e capítulos, observamos a Clare executando seu trabalho de lidar com os yomas. O Raki é o personagem por onde somos introduzidos aos conceitos das claymores, yomas e a organização.

Clare e Raki

Então a história retorna no tempo, quando a Clare ainda era uma criança, no momento em que sua família foi morta por yomas. Ela foi salva por uma claymore. Diante do trauma e do desamparo, Clare passou a seguir a sua salvadora e foi rejeitada algumas vezes até ser aceita.

Essa guerreira é Teresa, “do sorriso aparente”. É comum em Claymore que algumas personagens tenham apelidos. Teresa é a número 1 de sua geração. Essa característica de sorrir durante as batalhas é a que diferencia de outras guerreiras, dando essa impressão de ter uma facilidade em matar os yomas, até porque nem chega a consumir yoki a ponto de distorcer seu rosto.

Teresa

A intenção inicial da Teresa é deixar Clare em um lugar seguro, e depois seguir sozinha. Mas ela percebe que a vila que a deixou foi atacada por bandidos. A garota traumatiza cativou a mais forte das guerreiras, despertou uma consciência sobre sua própria vida que, até então, não tinha refletido.

Pelo apreço que adquiriu por Clare, ao tentar salvá-la, Teresa acaba matando seres humanos, quebrando a maior regra das claymores.

Nesse momento, Teresa decide mudar de vida e cuidar de Clare. Mas, diante do que ela fez, acabou parando na mira da organização. No momento em que Teresa iria se entregar para ser executada por outras claymores, ela não cede a vontade da organização.

Teresa encontrou um motivo para viver: Clare.

A número 1 derrota facilmente as guerreiras e vai embora. Então, o plano da organização foi mandar as quatro guerreiras mais fortes, da número 2 a 5. Teresa conseguiu lidar tranquilamente com quase todas, menos Priscilla. Essa guerreira era um prodígio, havia acabado de se tornar a número 2.

Ela tá ali querendo mostrar serviço e está determinada a derrotar uma “traidora” da organização. Carregada com esse sentimento, acaba usando demais seu yoki, ao ponto de quase estar a beira de despertar. Nesse ponto, Priscilla se toca de sua imprudência e pede para que Teresa a mate antes do pior acontecer, e essa cena acontece…

Teresa amoleceu seu coração? Essa distração tem a ver com a convivência com Clare? Ou realmente Priscilla sempre foi muito forte? A guerreira prodígio, meio desajeitada, acabava de se tornar um dos seres mais perigosos já vistos. Após demonstrar seu grande poder, vai embora, passando pela garota que estava ali paralisada, observando tudo.

Mais uma vez Clare se encontra desamparada. Ela caminha por uma cidade, no meio da multidão, segurando a cabeça da Teresa, procurando um membro da organização, na intenção de se tornar uma claymore. A garota não queria ser uma guerreira se misturando com um yoma qualquer, mas sim com os restos de Teresa.

Clare tinha um objetivo muito claro: uma vingança contra Priscilla.

Priscilla “poupando” Clare

O tempo volta ao presente. A partir desse ponto, Clare tende com o tempo a se separar de Raki e consolidar um grupinho com outras três guerreiras: Helen, Deneve e Miria (minha personagem favorita por sinal). Quando elas se conhecem é o momento que descobrimos que Clare é a número 47, ou seja, a pior ranqueada. Mas, como ela é a protagonista da história, obviamente não é a personagem mais fraca.

Claymore segue seu enredo, entregando novos conceitos de mundo, desenvolvendo as personagens em meio a desconfiança da organização e da presença de yomas despertados mais fortes. O anime segue até a metade do enredo como já dito, com um final “inventado”. Enquanto isso, o mangá seguiu até o fim, fechando melhor as pontas estabelecidas desde o começo da história de Clare.

Deneve, Helen, Clare e Miria

Na época do lançamento do último capítulo, vi algumas críticas a um final meio vago, de a luta final ter quase que um “deus ex machina”, a solução surgindo do nada. Mas não vejo dessa forma. Havia falado que dá para sacar que um determinado tipo de reviravolta pode acontecer, mas, os temas centrais de Claymore só terminam de se desenvolver no fim, mesmo que dê para conceber o desfecho.

É aquela coisa, o importante não é saber o que acontece, mas como acontece.

Por ser um shonen, séries de mangás ou animes voltadas a um público jovem masculino, espera-se de Claymore uma série de convenções. Mas, diante de suas temáticas, não faz muito sentido ter se ampliado mais que os 155 capítulos. É comum observar nessas obras voltadas a ação, uma tendência de elevar cada vez mais a escala das lutas, ameaças maiores surgindo uma atrás da outra, novos mundos a serem descobertos e, consequentemente, protagonistas aumentando a força.

É justamente a dedicação a esse foco narrativo que fez Claymore se tornar especial para seu gênero. Porém é o que também gera uma decepção para uma parte do público que espera essas convenções que mencionei anteriormente.

Quais são as temáticas de Claymore?

O que faz história ser algo diferente de uma simples busca por vingança ou do tal “poder da amizade”, é a forma que é ditada pelas personagens femininas. Por mais que se possa dizer que elas seguem arquétipos de mulheres, foge um bocado de clichês vistos em outros animes, isso foi algo que impactou bastante e me fez ser mais exigente da forma que isso poderia ser trabalhado em outras obras.

Aparentemente as claymores são muito iguais, é como se elas fossem feitas em criadores de personagens em um jogo, mudando apenas o estilo do cabelo, porque a cor, o tom da pele e os corpos são bem parecidos. No entanto, as personalidades dessas guerreiras são diversas, foi algo me impressionou bastante quanto assisti o anime lá atrás, sobretudo por se tratar de um “shonen de porrada” de ambientação medieval.

Há uma série de sutilezas na relação entre as personagens durante a trama. Levando em conta a forma que nos acostumamos a ver como mulheres são tratadas em animes, é surpreendente.

Mas, Claymore tem nudez, não é? Tem sim, porém, dá para ver rapidamente a diferença para uma outra obra que faz isso na intenção sexual da coisa, ou num contexto para chocar o público, como infelizmente o Berserk fez algumas vezes.

Mais uma vez, é importante salientar que Claymore é ambientado em um mundo medieval, e em um shonen voltado a ação, o poder das personagens está longe de ser concentrado na força bruta. Há até uma personagem que o autor talvez tenha brincado com esse aspecto, porque de fato ainda existe uma ideia errônea de mulher forte, mas que as suas características positivas são importadas de um ideal masculino, associados a confiança, força, enfim.

Diante desse ideal, uma demonstração de insegurança, de intuição, de cuidado e afeto são colocados na caixinha da personagem fraca, inútil, que precisa sempre ajuda, ou daquela que no máximo dá o suporte emocional, do papel de mãe, por exemplo.

Claymore não deixa de trabalhar com arquétipos femininos comuns, mas, o que faz uma personagem se desenvolver, até mesmo como uma guerreira, não tem relação com eliminar as características que em outras obras são taxadas como algo negativo, ou de menor importância para a trama.

Agora vou citar um termo que gera um “AVC” em certas pessoas, mas que não tem como desassociar: Claymore é sobre sororidade. A trama é sobre uma união entre mulheres que passaram por dores em comum, que foram condicionadas para serem instrumentos do patriarcado, que está justamente na figura da organização né? Um uma reunião de homens velhos que dão ordens para elas.

A história se desenvolve a partir da “rebeldia” de algumas delas, que lutam através dessas características que mencionei anteriores, vistas como fora do esperado, negativas ou frágeis. A luta dessas guerreiras não é apenas contra os yomas, mas contra uma força que atuou nos seus corpos desde a infância, disciplinando-as.

O que a Teresa passou foi justamente uma autodescoberta como mulher, a partir da sua vivência com a Clare. Ao longo da história, vemos guerreiras que querem serem ser outras coisas, mudar o mundo através de trabalhos sociais, ser mãe, relacionar-se como uma pessoa qualquer, viver isolada no campo ou num boteco enchendo a cara e falando besteira. No fim, elas só querem ser donas de suas vidas.

Isso tudo num mangá shonen de porradinha, em um cenário medieval em que mulheres costumam estar em condições frágeis

Ah, tem uma coisa que esqueci de lembrar, o autor de Claymore é um homem.

É bom mencionar isso, porque vemos tanto a desculpa de “mas é assim mesmo, a personagem é dessa forma porque na cultura do país é assim” Aí me dá a vontade de pegar uns dois volumes de Claymore e dar um tapa em quem chega com essa conveniência boba.

Diante do que falei, obviamente que uma mulher pode falar melhor do que eu sobre essas questões, das falhas que Claymore pode ter em relação a lidar com suas personagens, é bom para complementar ou contra argumentar o que escrevi nesse texto.

Minha coleção de Claymore

A importância pessoal de Claymore

Assim que terminei de ver o anime, fui atrás de ler o mangá. Deu para acompanhar e vivenciar a época que encerrou. A partir desse momento decidi comprar todos os volumes. Pelo fato de morar longe dos grandes centros do país, colecionar o mangá de Claymore foi uma jornada, na época não existia a possibilidade encontrar todos sendo vendidos de uma vez.

Nesse sentido, a coleção que tenho de Claymore é fruto de uma jornada. Alguns volumes possuem um valor sentimental particular, o primeiro que encontrei, os que comprei no bairro da Liberdade em São Paulo, dentre eles, o mais caro que tive de pagar. Em certo momento pensava o quão difícil seria encontra o volume 1, e eis que ganho de presente os três primeiros de uma vez só.

O último volume que consegui foi o 6, e tenho o vídeo do dia que recebi a encomenda.

A minha história com Claymore tem, portanto, o meu apreço pela obra si quanto que por essa jornada de colecionar. A tatuagem que fiz foi mais uma camada dessa minha relação com essa obra.

Minha tatuagem de Claymore

Claymore me fez ter essa visão mais crítica, que naturalmente se estendeu para outras mídias. O jeito que interajo com obras hoje em dia, passando por começar a ler livros com The Witcher, a maneira que Hollow Knight mudou minha visão de videogames, mais o mestrado que fiz em jogos, talvez Claymore seja aquela fagulha lá do começo, 10 anos atrás.

O que sou hoje tem um pouco da graça da Teresa, do olhar da Galatea, da intuição da Miria e da determinação da Clare.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

--

--

Erick Lúdico

Designer | Mestre em Comunicação | Penso, falo, pesquiso, escrevo e etc sobre videojogos 🎮