Ico e o corpo do videogame

Como a jornada do garota de chifres e da garota iluminada, escapando do castelo, é uma das maiores metáforas da experiência de jogar um videogame?

Erick Lúdico
30 min readMay 17, 2022

Ico é um jogo de 2001, desenvolvido por uma equipe que contou com o game designer Fumito Ueda. Esse nome já remete a um grande clássico do Playstation 2, Shadow Of The Colossus, um título aclamado que acabou ofuscando um pouco até da própria existência de seu antecessor. Na última década, Ico passou a ser mais relembrado, muito por ter sido inspiração de alguns jogos, em especial os da Naughty Dog, como o The Last Of Us.

Isso está na forma de construir momentos singelos, porém memoráveis, a partir de dois personagens em tela. Momentos esses que podem ser simples trechos de gameplay, quase que sem fala, do jogador utilizando algumas mecânicas e interagindo com outra personagem. Trechos esses que ditam as mensagens de toda uma experiência.

O que dá para notar é que Ico foi importante para os videogames, mas costuma ser sempre relacionado a outros jogos, seja na construção de teorias dos outros títulos do Fumito Ueda, ou nessa inspiração de uma gameplay com o jogador criando empatia por uma inteligência artificial companheira.

Mas, diante de um olhar distante para o ano de 2001, o que Ico faz, na sua experiência minimalista, que tanto nos ensina sobre nosso tamanho apreço por videogames?

Esse texto foi escrito durante meu período de mestrado, um estudo e ,ao mesmo tempo, um exercício de criatividade. O conteúdo se trata de um ponto de vista que eu elaborei e está aberto a discussões, a intenção está longe de querer impor uma verdade sobre Ico. O seu papel é oferecer uma leitura diferenciada da jornada do garoto de chifres e da garota iluminada.

ATENÇÃO, O TEXTO CONTÉM SPOILERS DE ICO!

A produção de um jogo minimalista

Ico começou a ser desenvolvido em 1998, destinado ao primeiro Playstation, entretanto, o projeto foi movido ao próximo console. O objetivo de Ueda era fazer um jogo que envolvia a relação de um garoto e uma garota, consistindo na jornada em que esses dois personagens criariam laços sem nenhum tipo de comunicação verbal.

Ueda tivera de inúmeras inspirações, mas a principal delas é do jogo Another World de 1991, o qual o seu criador, Éric Chahi, conseguiu construir um enredo onde um ser humano cria laços com um alienígena, uma interação com o mínimo de diálogo. A narrativa se desenvolve a partir dos momentos em que cooperação entre os dois é notada por suas linguagens corporais. Inspirado pelo jogo de Chahi, Ueda decidiu focar sua obra na relação entre os dois personagens principais utilizando as mecânicas.

Durante sua produção, Ueda percebeu que os diversos elementos inseridos até então criavam ruídos para se enxergar a essência da experiência. O time, a partir disso, empregou uma metodologia de produção que ficou conhecido como “design de subtração”. Ico perdeu em quantidade de conteúdo, de redução de número de inimigos ao escopo do enredo, inclusive os elementos de interface foram removidos da tela. Ueda queria tirar o aspecto “jogo” de Ico e oferecer uma maior sensação de realidade para o jogador, focando-se no garoto e na garota que precisam escapar do castelo.

Anteriormente ao processo de subtração, a parte que está versão final seria, até então, apenas a parte introdutória do jogo.

A capa japonesa e europeia de Ico deixam claro o que resume a experiência: um garoto e uma garota correndo de mãos dadas. Fumito Ueda fez por conta própria a arte da capa, inspirando-se na pintura “A Nostalgia do Infinito” do italiano Giorgio de Chirico, datada de 1911. A partir dessa obra, Ueda capturou a sensação de que as duas figuras da imagem estão solitárias sob uma imponente estrutura. Enquanto isso, a capa norte-americana está longe de carregar tamanho cuidado, ela consta de uma montagem simples de imagem. Especula-se que tal capa teve influência negativa no interesse dos jogadores dessa região do mundo.

Da esquerda para direita: pintura “A Nostalgia do Infinito”, arte da capa japonesa e europeia de Ico e arte da capa norte-americana de Ico.

Ico não teve um sucesso notável. Tanto a crítica, quanto os jogadores que o experimentaram, consideraram um grande jogo, porém, estava longe do mesmo apelo popular em comparação com outros títulos iniciais do Playstation 2.

Em seguida, Fumito Ueda e sua equipe trabalharam em Shadow Of The Colossus, lançado em 2005 para o mesmo console. Ele teve um sucesso maior que seu antecessor, por conta de seus aspectos a mais de “jogo”, e ainda assim, mantinha a questão do minimalismo e o enredo vago. Devido a sua maior popularidade, Shadow Of The Colossus divulgou melhor a linguagem que Fumito Ueda e sua equipe queriam passar com suas obras, causando o impacto que Ico não havia conseguido. Depois de 2005 passou a haver uma discussão no meio mainstream de como os videogames podem construir narrativas peculiares, através de suas mecânicas.

O estúdio Team Ico encerrou em 2011, porém Fumito Ueda permaneceu na Sony até o término da produção do jogo The Last Guardian, anunciado em 2009 e lançado apenas em 2016 para o Playstation 4.

O que acontece em Ico? (SPOILERS!)

O jogo inicia com uma cena mostrando um garoto de chifres (Ico) sendo levado para um castelo por guerreiros. Mostra-se todo um trajeto onde no fim ele é colocado em uma espécie de sarcófago, onde será sacrificado para o bem de seu vilarejo, segundo as palavras de um sacerdote que o acompanhou.

Após esses homens irem embora, ocorre um tremor e o sarcófago que prendia o garoto cai no chão e se quebra, libertando-o. Ico fica um tempo desacordado, passa a ter um sonho onde sobe um lance de escadas, visualiza uma gaiola onde surge um humanoide de aparência obscura. Após ser sugado por uma sombra na parede, o garoto acorda.

O jogador então começa a controlar o personagem. A partir de sua exploração pelo cenário, encontra o mesmo lance de escadas que leva ao topo de uma torre. O garoto se depara com a mesma gaiola de seu sonho, porém não mais em um clima de tempestade do lado de fora. Ico vislumbra uma garota (Yorda) e, por meio dos comandos do jogador, ele consegue descer a gaiola para próximo do solo, e colocando seu peso em cima da estrutura, a faz cair no chão, libertando a garota.

Quando Ico vai ao seu encontro, observa-se que Yorda é um ser bem diferente: o seu corpo parece ser feito de luz. Ambos ficam intrigados um com o outro, conversam com idiomas não compreensíveis para o jogador e entre si mesmos. As falas de Ico, entretanto, possuem legendas em inglês, mas a de Yorda é legendada com ícones não familiares.

Quando os personagens se aproximam, uma criatura misteriosa captura Yorda e a leva em direção a um portal sombrio no chão. Ico, com um bastão, golpeia o inimigo até que desapareça. Nesse momento, o jogador é introduzido ao combate do jogo, cujo objetivo é impedir que Yorda seja absorvida totalmente pelo portal no chão. O garoto não possui uma barra de vida e não pode morrer em combate. O jogo só encerra quando Yorda é capturada e Ico é transformado em pedra, ou quando o garoto cai de uma altura muito grande.

A criatura sombria capturando Yorda.

Na sala onde os dois estão há uma barreira formada por estátuas. Após o primeiro combate, o jogador descobre que apenas Yorda, com algum poder mágico, consegue abrir passagem por esses caminhos que estão presentes ao longo do jogo.

Em seguida há dois trechos de subida, onde o jogador descobre que Yorda precisa sempre ser guiada por Ico, seja chamando-a ou segurando sua mão. A jornada dos dois envolve uma fuga do castelo. A aventura é dividida em segmentos que se resumem a Ico indo de um canto a outro de um cenário, porém, a barreira de estátuas impede seu progresso e, a partir disso, o jogador deve construir um caminho favorável de acordo com as limitações de movimento da Yorda, inclusive oferecendo a mão para puxá-la a lugares mais altos, ou segurá-la num longo pulo.

Após sair do primeiro segmento que é a torre, o jogador se depara com uma espécie de sofá feito de pedra. Quando ambos os personagens se sentam é o momento em que o progresso do jogo pode ser salvo. Há vários sofás desses no decorrer da jornada, geralmente após concluir um segmento.

Logo no início, ambos têm a primeira chance de sair do castelo. Eles visualizam um enorme portão aberto, que dá acesso a uma ponte que leva para a saída. Porém, no momento que chegam perto, o portão começa a se fechar. Nesse trecho é revelada a vilã do jogo, conhecida apenas como “Rainha”. Ela possui o corpo escuro semelhante aos inimigos comuns, e consegue se comunicar tanto com Ico quanto com Yorda. Neste momento o jogador é informado que a Rainha é a mãe da garota, e que não vai permitir que sua filha saia do castelo. Após isso, ela desaparece.

Mesmo com essa intervenção, o objetivo principal do jogo não muda. Ico e Yorda buscam outra forma de sair do castelo, consistindo em ativar, por meio de refletores, duas esferas de energia que estão uma em cada lado do portão. Na prática essas esferas vão alimentá-lo de energia para que possa abrir novamente. Após cumprir essas subtarefas, o jogador se direciona para o portão.

Essas subtarefas consistem em realizar uma série de quebra-cabeças. Ico e Yorda conseguem fornecer energia às duas esferas, permitindo que o portão abra novamente.

Yorda utiliza de seu poder para abri-lo e, com isso, ela fica sem energias. Quando Ico segura sua mão para ambos saírem do castelo, a fraqueza da garota faz com que, em um intervalo de poucos segundos, ela venha a tropeçar, constantemente. Ao chegar na metade do caminho, as esferas de energia impedem Yorda de prosseguir. A ponte começa a se separar, e os dois ficam em lados opostos. Ico pula em direção a Yorda e ela segura sua mão no intuito de não o deixar cair. Mas, uma onda sombria se amplia e quando cobre o corpo da garota, ela perde suas forças e solta o garoto.

Pela primeira vez, desde o início, o jogador assume Ico sozinho, tentando entrar novamente no castelo pelo caminho inferior, o mesmo que entrou na cena inicial do jogo, porém uma barreira de estátuas impede o caminho. Após vasculhar o local, Ico encontra uma espada mágica, a qual consegue desempenhar o mesmo poder que Yorda tinha de liberar essas passagens.

Ico chega a sala onde estão os sarcófagos, a mesma que inicia o jogo. Mas há algo diferente, ele observa que Yorda está petrificada e sombras, que se assemelham a garotos com chifres como ele, rodeiam o corpo de pedra. Ico com sua nova arma elimina todas as sombras e assim libera o acesso a um grande salão com um trono, o qual ele encontra a Rainha.

A Rainha revela seu real objetivo: usar o corpo de Yorda como recipiente para seu espírito, pois, o seu atual corpo está se desgastando. Quando esse processo estiver finalizado, Yorda não irá mais existir. A Rainha diz para o garoto ir embora, mas ele tenta atacá-la com sua nova espada, porém, é jogado para longe. O impacto da queda quebra um de seus chifres.

Inicia-se a batalha final, onde o garoto bloqueia as ondas de energia escura da Rainha com sua espada, ou se protegendo nas estátuas espalhadas pelo cenário. O jogador, utilizando dessa tática, consegue chegar perto da inimiga e desferir os golpes. Após derrotada, a Rainha volta a afirmar que Yorda nunca poderá sair do castelo, e quando ela desaparece, um novo impulso de energia joga Ico para longe, batendo violentamente contra a parede, perdendo seu outro chifre.

Da esquerda para direita: a batalha final contra a Rainha e o último golpe de Ico.

O castelo começa a ruir. Todos os sarcófagos energizam o corpo de Yorda, que volta a se mexer, porém, ela está totalmente sombria. A garota vai até a sala do trono e segura Ico, que está desacordado. Yorda carrega o seu corpo, fazendo o caminho inverso do garoto. No fim, ela o coloca em um bote de madeira que o leva para longe do lugar.

As estátuas energizam o corpo petrificado de Yorda para acordá-la. Em sua nova forma, ela empurra o bote de madeira, que levará Ico para fora do castelo que está sendo destruído.

Após a cena que mostra a destruição do castelo, dando a entender que está afundando no mar. Tem-se os créditos finais onde toca a música You Were Here, que sua tradução é: “você esteve aqui”. Depois dos créditos, Ico acorda em uma praia, onde o jogador volta a assumir o controle. Correndo com o personagem e explorando o local, o garoto acaba encontrando a garota, deitada. Yorda está com sua aparência original e acorda.

Esse é o fim de Ico.

O castelo sendo destruído aos poucos, a cena que Yorda em sua forma original é encontrada por Ico na praia.

Investigando a jornada de Ico

O final do enredo é bastante vago, o que se sabe com clareza é que o garoto sobreviveu e o castelo foi destruído, porém, o destino de Yorda é incerto. Tudo indica que a garota permaneceu no castelo em meio a sua destruição e como afirmou a Rainha: ela realmente não podia sair dali. Entretanto, Yorda aparece para Ico na praia, com a forma que vimos na maior parte do jogo, dando a entender que os dois viverão uma vida libertados de seus destinos iniciais.

Porém, parte dos fãs acreditam que sua aparição na praia é fruto da imaginação do garoto e que Fumito Ueda quis dar um final de conto de fadas a Ico.

Os outros jogos de Ueda compartilham o mesmo mundo de Ico, em tempos e lugares diferentes, no entanto, contam com elementos em comum. O final de Shadow Of The Colossus é a ligação mais clara, pois nele aparece um bebê com chifres, levando a crer que é o primeiro da “raça” a qual pertence o protagonista de Ico. O próprio Fumito Ueda afirma que o jogo de 2005 é precursor. Entretanto, a maioria esmagadora das teorias de Ico consiste no jogo relacionado a seus sucessores, e não desvendando os seus mistérios em si.

A partir desse ponto, trago uma leitura particular a respeito da experiência jogável de Ico. Essa visão parte de dois conceitos utilizados no estudo de jogos:

1. Círculo mágico, de Johan Huizinga no seu livro Homo Ludens (1938), o termo é usado para definir o local artificialmente criado onde a atividade lúdica existe, onde suas regras e objetivos estão definidos, cercados por uma fronteira que delimita o jogo no tempo e espaço.

2. Interação lúdica significativa, é o que surge na interação entre o jogador e o sistema de jogo, bem como o contexto que o jogo é jogado. De acordo com os autores Salen e Zimmerman (2004), é o principal objetivo de um design de jogos bem-sucedido. Essa interação origina camadas de significado que se acumulam e dão forma a experiência de um jogador.

Esses conceitos serão essenciais nesse texto para relacionar o jogador com o jogo Ico, explorando a possibilidade que os corpos atuantes no mundo ficcional (Ico, Yorda e o castelo) são metáforas dos corpos atuantes na interação lúdica.

A metáfora dentro e fora de Ico

Como já dito, o escopo de Ico é minimalista, o objetivo apresentado pelo enredo fictício se dá pelo garoto tentando sair do castelo, levando a garota junto. Enquanto isso, qual é o objetivo do jogador? Na maioria dos casos é finalizar o jogo, testemunhar o fim de uma determinada narrativa por meio da sua interação.

Mas qual é a “garota” que o jogador deve trazer consigo?

Ico precisa vencer o castelo, enquanto o jogador precisa vencer o jogo. Por meio dessa relação, dá para se traçar uma metáfora de que Ico representa o jogador, a sua representação no ambiente virtual. O castelo representa o jogo, ou mais especificamente a estrutura rígida que sustenta um videogame, seu suporte eletrônico, sua tecnologia, a materialidade de seu hardware.

Não apenas o console, no caso o Playstation 2, mas outros periféricos também compõem o suporte eletrônico, o joystick que permite o jogador interagir com o videogame, a televisão que emite as imagens visuais e sonoras, aliás, é o principal meio onde o jogador percebe onde suas ações interferem no mundo virtual. Todos os componentes que permitem a percepção do jogo, por parte do jogador, constitui o suporte eletrônico. Ele aqui é metaforizado como o castelo, o qual o jogador precisa dominar seus códigos para vencer os desafios apresentados.

Tanto Ico quanto o jogador estão conhecendo um novo ambiente, o castelo. Yorda parece um ser de outra realidade, pois, apesar de ser residente do local, possui uma dependência de Ico para definir seu deslocamento. Na verdade, ambos possuem percepções próprias do mesmo espaço que compartilham, o fato de possuírem línguas particulares denota que vieram de ambientes diferentes, inclusive os separando da língua do próprio jogador, que veio de sua vida comum para se engajar na interação lúdica.

Com a ausência de diálogos, os personagens principais se tornam vagos, suas características não são preestabelecidas. Essa lacuna fornece o espaço em branco para o jogador pensar sobre o que está acontecendo. Quem supõe o tipo de laço entre os dois é o próprio jogador.

Será que Ico é realmente altruísta em suas ações? Ou será que ele apenas se utiliza de Yorda, pois ela pode abrir as passagens com sua magia?

O jogo Ico foi concebido com o foco na relação entre dois personagens, simulando fisicamente a ligação entre eles. Para manter Ico de mãos dadas com Yorda, o jogador deve manter um dos dedos sobre o botão R1. Isso representa de alguma forma que o ser humano fisicamente se conecta com a personagem da tela, por meio de uma extensão do seu corpo que é o joystick.

Destaque do dedo indicador direito sobre o botão R1, o que mais o jogador faz durante a experiência de Ico.

O trecho onde os dois são separados, quando a ponte começa a se dividir, é crucial, pois nesse momento é dado ao jogador o controle de Ico, que tem a liberdade de decidir se irá voltar para resgatar Yorda, ou finalmente irá embora de uma vez por todas.

Mesmo que esse segundo caminho não seja possível de ser executado, existe a oferta de tal possibilidade. Após a garota abrir o portão, o jogo passa uma impressão que os laços entre os dois fica instável, pois, por mais que ela constantemente caia, o jeito que Ico a puxa para continuar a corrida passa longe de ser uma ação delicada.

Momento em que os dois se separam.

A perspectiva lúdica, segundo Huizinga, oferece significado as atividades humanas, e mediante ao que lhe é imposto pela formalidade das regras, o jogador deve em Ico preencher as lacunas do que não é oferecido pela narrativa: suas expectativas, seus sistemas de valores e seu conhecimento prévio. A partir desses mesmos aspectos, o jogador no fim de sua experiência vai atribuir sua interpretação ao que aconteceu, desenvolve ou não um significado de sua jornada.

Ueda e sua equipe construíram o sistema de jogo, que envolve basicamente o enredo que guia a narrativa, o cenário do castelo, os desafios (quebra-cabeças e inimigos) e o que Ico pode fazer (mecânicas do jogo). A partir dessa estrutura formalizada, é por meio da interação dos dois personagens principais que os significados emergem para o jogador. O jogo é uma interface construída pelas intenções da equipe em comunicar valores. O contato dessas intenções materializadas com a interação lúdica em si, somado aos valores do jogador (empregados em suas ações por meio de seu avatar) criam um novo sentido ao que foi originalmente concebido.

Não há uma réplica da intenção do criador na mente do jogador no final desse processo.

Fumito Ueda expressa sua mensagem através do jogo, este suporte oferece uma realidade simulada que revela aspectos que são invisíveis na vida comum, que de algum modo passam despercebidos da percepção da nossa rotina. A equipe de Ico assume a figura de artistas, que construíram sua obra por um dispositivo que se utiliza de diversas formas de representação. O jogo atua como um sistema que envolve: pintura, escultura, literatura, música, teatro, cinema, etc.

O videogame como simulação permite com que o ser humano possa alterar o meio que está interagindo a cada novo significado adquirido. Ico, e os demais jogos de Fumito Ueda, conectam o jogador aos personagens utilizando muito pouco de recursos narrativos já estabelecidos, como o cinematográfico e literário. A progressão dos eventos e os significados atribuídos pelo jogador são mediados sobretudo pela jogabilidade, pelos comandos passados por meio do joystick, que nada mais são que reações fisiológicas humanas estimuladas pelos signos transmitidos pelo suporte eletrônico.

Na exploração das diferentes percepções humanas aos signos do jogo, cada jogador busca a ligação com seu avatar. a singularidade do corpo virtual entra no conceito de Damásio sobre si-mesmo: “a coleção de imagens que representam os aspectos mais constantes do organismo e suas interações com o ambiente e outros seres vivos” (GREINER, 2005).

O que constrói a identidade de Ico são as suas ações, como se trata de um videogame, elas tem uma relação intrínseca com o ser humano, pois ele atua nas tomadas de decisões, que ao decorrer da progressão constroem imagens que estabelecem o que é aquele personagem para o jogador, permitindo assim a criação de contextos existentes durante a interação lúdica. Mas tais contextos não são estabelecidos apenas pela concepção do personagem Ico, o jogador utiliza de sua memória, suas expectativas e os demais signos presentes no jogo para que as ações tenham significados.

A memória se desenvolve pelas experiências, dos percursos percorridos pelo jogador, tanto na vida comum quanto no seu domínio da linguagem dos videogames. No que se diz respeito a jogos, realmente se trata de percursos transcorridos por meio de diferentes simulações de corpos que um jogador pode experimentar, dominando mecânicas e se familiarizando com o mapeamento de botões instaurados, o ser humano indiretamente conhece ambientes com variadas características físicas e espaciais. De fato se tem a memória categorizada por Gerald Edelman como “tentativas repetidas em diversos contextos” (GREINER, 2005).

Essas tentativas repetidas na interação lúdica não seriam apenas nos aspectos formais de um jogo, mas uma memória de diversas ações significantes. Elas atuaram no papel de atualizar seu sistema de valores, sua capacidade particular de interpretar as representações que lhe são apresentadas, a qual influência sua decodificação de signos apresentados em um novo jogo.

Uma das ligações mais fortes do ser humano com seu avatar é o instinto de sobrevivência, e o que jogador evita ao máximo em cada experiência? A morte do seu personagem.

Por mais que a morte nos videogames seja uma camada simbólica para as falhas do jogador em cumprir seu objetivo, certamente, os desenvolvedores de jogos utilizam de nossos instintos primitivos para a criação de punições e recompensas mais estimulantes para permanecemos engajados no círculo mágico.

A partir do que é apresentado no ambiente de jogo, o jogador consegue estabelecer o que pode ser interativo ou não, que segmentos ele segue sozinho e quais precisa auxiliar Yorda. O discernimento do jogo se resume a essa descrição, as mecânicas não são apresentadas por textos, demonstrações em vídeo, figuras, etc.

Em Ico, o jogador conhece as regras do jogo através das situações vividas e, a partir disso, conhece a lógica dos segmentos, bastando o raciocínio de utilizar dos meios disponíveis no cenário para atravessar ao outro nível. Sem as referências do ambiente, o jogador não sabe o que fazer. Com isso se destaca as cutscenes e o comando de movimentar a câmera pelo cenário, que, por mais precário que seja comparando aos jogos atuais, permite enxergar o espaço ao redor dos personagens.

Para quem desenvolve o jogo, o ambiente é projetado levando em conta o contexto do mundo criado, principalmente se ajustando as mecânicas do personagem controlado. Assim, o ambiente, aproveitando o pensamento do filósofo Mark Johnson, “não é uma estrutura exterior imposta aos seres vivos, mas uma criação co-evolutiva com eles” (GREINER, 2005). No caso dos jogos de Ueda, o personagem que o jogador controla é o intruso ao ambiente modelado aos seres que habitam nele, mas, mesmo assim, o trabalho de um game designer é construir a lógica para o fluxo do jogo.

A justificativa por trás de alguns ambientes “irreais” é uma marca dos jogos de Fumito Ueda. O castelo de Ico nem é um ambiente tão diferente, mas os cenários amplos de Shadow Of The Colossus realmente fazem sentido para uma terra povoada por colossos gigantescos. Em The Last Guardian, o cenário formado de inúmeras torres são condizentes com as criaturas aladas que habitam nele. Nesse sentido, videogame permite que, no fim das contas, por mais antiquado que seja o ambiente ao seu visitante (jogador), ele é feito para o contexto do jogar, o ser humano desenvolve novas perspectivas espaciais por meio de sua interação.

A memória influencia a expectativa e, no caso de Ico, a sua física “realista” desfavorece uma jogabilidade mais intuitiva. A antecipação do movimento do pulo é maior que a de um jogo de plataforma como um Super Mario. O próprio botão de pulo não é convencional, nos jogos ocidentais geralmente se utiliza o “X” para saltar e no caso de Ico o comando é o “Δ”, que é o botão mais acima dos quatro de ação. Há uma analogia ao fato de que o triângulo indica uma seta para cima, na lógica de quem definiu os ícones segundo a Sony do Japão, algo associável a ascensão, ao pulo.

Posicionamento dos botões de ação, o “triângulo” em cima e o “x” em baixo.

Além mudanças formais, o progresso do jogo não está atrelado ao que o personagem principal faz, não sozinho, mas depende muito de Yorda abrindo as barreiras de estátuas. Levar a garota consigo durante a jornada, envolve resgatá-la inúmeras vezes dos inimigos sombrios. Costumeiramente trechos de jogos onde se exige a proteção de uma inteligência artificial vulnerável é um dos elementos que mais causam raiva por parte dos jogadores, então imagine um jogo inteiro assim.

Uma das sensações favoritas do jogador é sentir que suas ações são fundamentais, que mudam o mundo o qual está interagindo, e dividir esse “protagonismo” oferece um novo sentido a experiência.

Dominar as regras do jogo em Ico não é dominar o corpo de seu avatar para lidar com os conflitos, mas é entender o ambiente e o contexto para favorecer a progressão do corpo da inteligência artificial companheira. É necessário paciência para depender das habilidades de um outro corpo dentro do jogo, numa indústria em que o protagonista (o jogador) costuma mover por conta própria as narrativas. O arcabouço de experiência do jogador entra em conflito com a experiência única oferecida por Ico, podendo ser extremamente significante ou significantemente frustrante.

Yorda é incapaz de traçar seu trajeto por conta própria, devido ao fato de ter ficado encarcerada em lugar alto e isolado, ou segundo parte dos fãs, não pertencendo originalmente àquele mundo, sendo que a natureza de seu corpo molda sua noção espacial. Yorda se encontra num processo de adaptação do seu unwelt, que é a construção de seu mundo com um novo ambiente apresentado. Seu inconsciente se desenvolveu a realidade anterior que a envolvia, e por mais que ela tente conscientemente ter controle de suas ações para escapar do castelo, sua memória inconsciente não se adaptou ao mundo de Ico. O que a garota consegue interagir, em especial as estátuas, talvez sejam algumas das poucas semelhanças as quais podia associar com seu mundo, o signo que conseguia decodificar.

O ser humano desempenhando sua atitude lúdica, abre mão dos meios eficientes para entrar no círculo mágico, abre mão de respostas concretas e desempenha suas ações para dar sentido ao que está no espaço virtual. Deixamos de lado as regras da vida comum para abraçar a artificialidade do jogo, criando novas possibilidades e também novas restrições a partir das mecânicas do personagem, como também dos objetivos e punições impostas pelo jogo.

Em Ico, ao assumir cuidar de um outro corpo, as decisões do jogador dependem de uma parceria com a inteligência artificial, os objetivos e punições estão atrelados a um corpo que o jogador não tem controle. Com isso, Ueda subverte as atribuições do que seria tratar o jogador como sujeito atuante no contexto e o restante dos personagens como objetos passivos, Ico oferece uma nova percepção, que por sinal, foi possível graças ao “design de subtração”.

Abrindo mão do “protagonismo”, o jogador é premiado com a evolução mais significativa do jogo, que é Yorda demonstrando seus laços por Ico, segurando a mão do garoto na ponte, e mais adiante na cena final, onde leva seu corpo para fora do castelo, sabendo muito bem o caminho a seguir e como executar tal tarefa. Se Ico tivesse uma linha de diálogo para cada situação do enredo, o jogador procuraria definir sua personalidade relacionando a um banco de dados de estereótipos de personagens, que pode incluir pessoas reais, em consequência se sentiria menos participativo nas ações do garoto.

A memória do suporte eletrônico pode ser o formal procedimento de salvar o progresso do jogador, o qual é registrado o estado atual da jornada. Mas o que constitui a memória, no que tange a produção de interações lúdicas significativas, é o histórico de experiências que a própria indústria dos videogames como todo proporcionou, até o ponto que permitiu as articulações dos elementos que tornaram possível tal experiência de Ico. Esses elementos podem ser a evolução da tecnologia, aprimoramento de mecânicas e o surgimento de novas possibilidades de recursos narrativos. Todos esses percursos formam um arcabouço de tentativas sucedidas ou fracassadas que os desenvolvedores têm disponíveis para aplicar na produção de um jogo, e como vão sistematizar para gerar um significado.

O ser humano atua para cumprir as metas objetivas e subjetivas, usando sua memória para sobreviver no jogo e se adaptar, decodificando os signos. O fluxo de imagens construídas em sua mente se traduz nos estímulos, em particular as sensações de prazer e imersão, resultando ou não seu engajamento na atividade. A memória do suporte eletrônico está presente nas possibilidades de simulação, representação, construção de narrativa e demais recursos disponíveis, os quais se destina para reforçar o engajamento do ser humano no jogo. A propriedade emergente das partes desses sistemas permite a existência do círculo mágico, que é essa constante manutenção do engajamento no ambiente artificial isolado da vida comum, através de uma rede onde as mensagens se retroalimentam.

É importante destacar a emergência, a capacidade de atualização dos sistemas no processo de interação, pois ela se manifesta na relação entre os três corpos presentes: Ico, Yorda e o castelo. O maior número de elementos em um jogo não necessariamente reflete na sua produção de valores. Em Ico, a interação do garoto e da garota é maior que os aspectos formais, o significado emerge do contato entre as partes desses dois corpos atuantes, o videogame e o ser humano.

Não há elementos visuais de interface em Ico, a maior parte do jogo não possui trilha sonora, o jogador apenas ouve o passo dos dois personagens. Há o mínimo possível de elementos que diluam a mensagem que o jogo quer passar. O design de subtração se tornou mais notável, pois o jogo foi lançado em uma época onde os desenvolvedores buscavam ampliar o escopo de suas obras.

Os gráficos tridimensionais estavam cada vez mais consolidados e se o CD-ROM já ampliava a capacidade de armazenamento em relação aos cartuchos, os novos consoles, em especial o Playstation 2, comportou uma nova mídia que era o DVD-ROM, que ampliava ainda mais essa capacidade de armazenamento. Além disso, os novos consoles aprimoraram o processamento gráfico.

Fumito Ueda indo no sentido oposto da empolgação da época, meio que “sabotava sua própria obra”. Reduzir o escopo, permitiu que as características de Ico se tornassem mais polidas no produto final, o preenchimento dos dados do disco contribuiu no aprimoramento das expressões faciais dos personagens mais detalhados e o som de seus passos mais realistas.

Ico é considerado vago, seus elementos podem ser inacabados, porém, são abertos para o jogador preencher seus valores, permitindo uma experiência mais significativa dos momentos do jogo. O controle do corpo de Ico é assumido pelo jogador, e de certa forma até o propósito da história está na construção da mente de quem está jogando.

Por que estamos nesse contexto e para onde vamos? Porque a Rainha não quer deixar Yorda sair?

Esses elementos invisíveis servem para o jogador se focar na ação dos corpos e não se perder na busca de justificativas. No fim das contas Ueda faz que o ser humano se importe com dois corpos digitais formados de polígonos.

O que levamos do jogo

A experiência que Ico proporciona se centraliza em seus três corpos atuantes: o garoto, a garota e o lugar em que estão. Ao estabelecer a metáfora do início do item anterior, Ico se relaciona com o jogador, o castelo representa o que é necessário vencer, no caso o videogame. Será que Yorda é tão relevante no mundo ficcional e nada pode ser relacionado a ela na interação lúdica? Para superar os diversos desafios impostos pelo castelo e atingir seu objetivo de escapar, Ico precisa de Yorda para liberar certas barreiras. Mesmo no momento em que teve a chance de fugir sozinho, o garoto fez questão de escapar junto de sua nova companheira, mesmo que o jogo reforce a diferença entre os dois e também que Yorda não podia escapar.

“Ela vive em um mundo diferente que alguns garotos de chifres!”

O videogame como um meio de comunicação atua no transporte de sentido, o projeto de Ico passou por inúmeras etapas, as quais se solidificam nas características do jogo as ideias de Ueda e sua equipe. O que existe de concreto em um videogame originou-se das abstrações nas etapas iniciais de desenvolvimento. Antes de se estabelecer como linguagem, os processos de pensamento são metáforas.

O sentido gerado ao jogador por meio da interação lúdica, permite o ser humano dinamizar os códigos e desconstruí-los ao nível de metáforas, que podem construir um novo sentido a experiência. Essa capacidade criativa envolve a memória, onde o percurso do jogo se encontra com outros caminhos percorridos, não apenas das experiências como jogador, formando uma imagem própria que emerge para seu pensamento consciente, influenciando a tomada de novas decisões.

Por mais que essa construção de um novo sentido esteja bem longe do que Fumito Ueda idealizou como mensagem no jogo, os valores foram produzidos, o corpo se atualizou, passando a compreender a realidade de uma outra forma.

Ico quer levar consigo Yorda, e o jogador quer levar, mesmo inconscientemente, algo para fora do círculo mágico. A interação lúdica permite a atribuição de sentido as ações humanas, e cada atitude do garoto tem a ver com a garota mediante aos desafios impostos, não há nada maior que mantenha o engajamento humano que o vislumbre do sentido de suas ações em uma atividade. O castelo que é a representação do suporte eletrônico que também ajuda na manutenção do círculo mágico.

No decorrer da narrativa há indícios que permitem a melhor construção dessa metáfora. Antes de encontrar Yorda, sair do castelo parece um objetivo vago, não haveria um grande sentido que movesse o enredo, o qual precisa contar com o esforço humano para sair da estrutura formalizada do jogo. Logo após sair da torre, o jogador se depara com os sofás de pedra que são os dispositivos que salvam o progresso, o momento mais propício para a pausa da atividade lúdica. O sofá é a imagem que mais remete a algum objeto presente no espaço físico onde o jogador joga em um console, o artefato mais próximo que faz essa ponte para lembrar que é apenas um videogame.

Quando Ico e Yorda se encaminham para sair pelo portão no início do jogo, a Rainha aparece dizendo que a garota é sua filha e que ela não vai sair do castelo, pedindo para Ico ir embora. O objetivo da antagonista é capturar o corpo de Yorda, pois o seu está desaparecendo, a Rainha pode representar o significado das experiências que os jogos proporcionavam até então, o objetivo que estava estabelecido na produção da época e que Ico renunciou.

Pelo fato de estar precisando de um novo corpo, a evolução da indústria dos videogames demandaria um novo sentido para o engajamento humano em um jogo. O que é revelado de novo para o jogador é a energia de luz, de Yorda, das esferas que abrem o portão, e a energia escura podem ser os valores antigos proporcionado pelos videogames. O momento em que os personagens tentam novamente sair do castelo, Yorda utiliza a energia para abrir o portão e enfraquece seu corpo. A escolha de Ico para ir embora significaria que o jogador vivenciou uma experiência marcante, mas o significado não veio consigo após finalizar o jogo.

Quando Ico decide voltar, Yorda não consegue segurar seu braço e seu corpo acaba caindo. O garoto explora as partes inferiores do castelo sozinho, porém com a determinação de resgatar a companheira, o jogador quer adquirir o significado além de cumprir o objetivo do jogo. A imagem que representa esse desejo é a nova espada que o personagem adquire, que além de enfrentar os inimigos para cumprir os desafios formais, serve para abrir as barreiras de estátuas, ou seja, o ser humano passou a acessar o jogo através do que aprendeu, o significado começa a ser posto em prática.

Ico repete o percurso para chegar ao ponto onde passou a ser controlado pelo jogador. Na introdução o garoto estava sendo escoltado por guerreiros. Um deles utilizou a mesma espada para abrir a passagem entre as estátuas, ou seja, aqueles corpos possuíam uma memória sobre o castelo. A cena inicial pode ser uma metáfora dos desenvolvedores levando o jogador para essa interação lúdica. Ico seria sacrificado para lidar com a maldição dos chifres em seu vilarejo. O jogador foi colocado em uma experiência não das mais intuitivas e fáceis, mas, para o bem do videogame, a experiência proporcionada por Ico exploraria melhor a sua capacidade única, talvez um potencial não bem aproveitado.

Um dos guerreiros abrindo a barreira de estátuas com a espada mágica, na introdução de Ico.

Quando Ico se depara com Yorda petrificada, rodeada pelos inimigos sombrios, ele começa enfrentar vários deles. Essas figuras, diferentes das vistas do restante do jogo, assemelham-se mais a garotos com chifre. No total são trinta e nova que o jogador precisa vencer para ter acesso a sala do trono. Esse número, somado a Ico, é o mesmo de sarcófagos da sala.

Os inimigos sombras podem representar os outros jogadores atrelados a mesma convenção de desejos que querem suprir em um jogo, ligados a metáfora da Rainha. Esses jogadores foram apresentados a experiência diferenciada de Ico, porém sequer conseguiram sair de seus sarcófagos. As trinta e nove entidades são menos desenvolvidas que os que são vistos no decorrer da jornada, que representam os jogadores mais antigos que viveram tantas experiências imersivas, que perderam a forma humana de seus corpos, fantasiando-se de acordo com as representações que entraram em contato.

O garoto que o jogador assume o controle é uma exceção, o que seria considerado um acaso, uma desordem na organização dos sarcófagos permitiu Ico escapar, essa entropia é o ponto de se quebrar as rupturas dos códigos estabelecidos nos jogos. A batalha contra as outras sombras, é a luta contra um sentido comum de um mesmo tipo de experiência em jogos. A luta final contra a rainha é a resistência do jogador ao que é estabelecido nos videogames, tanto que a única forma que a antagonista lhe ataca é uma onda de energia escura, que petrifica Ico.

Através da sua nova espada e de utilizar das estátuas no cenário, o garoto não é atingido por esse poder, uma forma de demonstrar como o jogador conseguiu se utilizar dos símbolos que decodificou ao longo da aventura. A quebra de seus chifres é o fim da maldição que o povo do vilarejo queria eliminar, a absorção do significado da obra. A destruição do castelo é o fim daquela experiência.

O jogador pode até repetir o jogo, mas aquele momento que vivenciou é único, o ser humano terá uma outra leitura daquele mundo virtual oferecido pelo suporte eletrônico.

O que mais intriga os fãs até hoje, é a dúvida se Yorda permaneceu no castelo em sua forma escura ou realmente é a que apareceu para Ico com sua aparência original. De fato, ela assumiu o lugar da mãe, mas atualizou a memória do suporte eletrônico, de como os desenvolvedores passaram a produzir seus jogos.

Ico é um dos títulos de maior influência desse início de século, seja por conta do design de subtração ou como estabeleceu uma nova forma de se relacionar o avatar do jogador com outra inteligência artificial, essa evolução vai desde de jogos independentes de menor orçamento às grandes franquias da indústria. Os outros dois jogos liderados por Fumito Ueda: Shadow Of The Colossus e The Last Guardian, aprimoraram o que foi estabelecido em Ico.

Enquanto que a Yorda de aparência original é o significado que o jogador leva da interação lúdica. Ambos não possuem as mesmas materialidades, continuam não falando a mesma língua, mas assim como a garota vai continuar existindo para o garoto, o significado continuará existindo ao ser humano, em sua memória, e pronto para ser aproveitado nas próximas experiências.

O corpo do jogo em Ico

Nenhum de nós consegue transmitir a totalidade das ideias, o nosso corpo é a interface para a comunicação com o ambiente, os outros seres e objetos. Através dos nossos sentidos conseguimos perceber os signos ao redor, e partir da nossa memória, construindo imagens, atribuímos seus significados. O produto Ico é a interface para as ideias de Fumito Ueda e sua equipe serem comunicadas, atreladas às linguagens presentes em um videogame, que diferente de outras mídias permite com que o interator se sinta transformador daquele contexto, materializando o resultado de sua construção de imagem a cada instante. No final da experiência o jogador atribui significados aos eventos da narrativa, porém incapaz de entender a totalidade da intenção de Ueda, assim como não será integrante pleno naquele mundo virtual.

Entre o ser humano e o suporte eletrônico, existe o espaço onde circulam os signos: o jogo em si, a interação lúdica.

O jogador é estimulado por suas reações internas para manter seu engajamento contínuo no jogo, alimentando sua construção de imagens durante sua relação com o mundo artificial possibilitado pela tecnologia, reforçando o círculo mágico, que não quer dizer uma busca do alcance literal do corpo físico no ambiente virtual. Por sua vez, o suporte eletrônico internamente processa os dados para a sustentação coerente do mundo digital. Através de sua interface, os comandos do jogador são decodificados e, a partir da programação, gera respostas perceptíveis aos sentidos humanos que retroalimentam a rede de signos que constitui a interação lúdica.

O jogo é a comunicação entre o ser humano e o suporte eletrônico, que move a progressão de ambos, atualizando-os no decorrer da troca de informações. No fim da jornada, nem Ico e nem o castelo possuem a figura de Yorda iluminada, o corpo do jogo, a interação lúdica significativa. Ela não pertence intrinsecamente a nenhum dos dois, mas a sua mensagem permanece neles de alguma forma.

REFERÊNCIAS

  • SIMULATION 101: Simulation versus Representation - Gonzalo Frasca.
  • Playability: how to identify the player experience in a video game - González Sanchez, Padilla Zea, Gutiérrez F. L.
  • O corpo: pistas para estudos indisciplinares - Christine Greiner.
  • Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura - Johan Huizinga.
  • Philosophy In The Flesh - George Lakoff, Mark Johnson.
  • Metáforas da vida cotidiana - George Lakoff, Mark Johnson.
  • Subliminar: como o inconsciente influencia em nossas vidas - Leonard Mlodinow.
  • Breves considerações acerca do videogame - Sérgio Nesteriuk.
  • Segredos do Joystick: a CPU como interpretadora de signos; a máquina como enunciadora de discurso - Mirna Pereira, Roseli Lopes, Irene Machado.
  • Regras do jogo: fundamentos do design de jogos, principais conceitos - Katie Salen, Eric Zimmerman.
  • Videogames e arte: discussões sobre paradigmas e complexidades possíveis - Julia Stateri.
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Erick Lúdico

Designer | Mestre em Comunicação | Penso, falo, pesquiso, escrevo e etc sobre videojogos 🎮