Hollow Knight e a consciência da incompletude

O mundo de insetos que nos incentiva a aceitar as incertezas e buscar os vácuos em meio a uma disputa de poder.

Erick Lúdico
16 min readDec 21, 2020

Assim como os jogadores adentram às profundezas de Hallownest, escavando o labirinto do reino em busca da progressão e o desvendar de segredos, a produção de Hollow Knight começou como algo simples, que a Team Cherry foi sobrepondo camadas para se tornar o produto que conhecemos hoje. O enredo de Hollow Knight foi elaborado após sua conceituação formal, ou seja, primeiro foi planejado o sistema de jogo e depois uma “desculpa” para contextualizá-los.

No que foi mostrado de Silksong até agora, essa relação no segundo jogo da Team Cherry parece mais direta e idealizada desde o início. No caso, o uso de seda como fio de manipulação dos insetos como marionetes, personagens trajando vestimentas religiosas, a presença de sinos em diversos ambientes etc; demonstra que o time australiano possui sim um método para implementar informações que constrói seus mundos, carregada de uma intenção nos seus significados, mesmo que distante do que se possa teorizar.

Portanto, por mais que o primeiro Hollow Knight não tenha uma mensagem, devido a narrativa aberta, os elementos combinados permitem uma leitura complementar, como em qualquer jogo.

ESSE TEXTO CONTÊM SPOILERS DA TRAMA DO JOGO, LEIAM POR SUA CONTA EM RISCO.

Dito isso, vamos falar de uma leitura que tenho sobre o enredo de Hollow Knight. Me senti a vontade de compartilhar uma visão de Hallownest como um terreno de disputas ideológicas. Não se trata de uma tentativa de adivinhar o que passou na cabeça do pessoal da Team Cherry, mas é uma forma de me apropriar e ver como esse joguinho pode oferecer uma perspectiva nossa enquanto indivíduos, na incerteza de quando somos apresentados a mais de uma forma de idealizar a vida.

Um resumo do enredo de Hollow Knight

Hallownest é um reino composto de diferentes insetos, sob o poder do Rei Pálido. Esse ser é um Wyrm, uma espécie de minhoca colossal, que abandonou sua carapaça na região para assumir uma nova forma. O Rei unificou essas diferentes comunidades e lhes forneceu, dentre outras coisas, a luz da consciência para deixarem de ser animais irracionais movidos por instintos. Nem todos os insetos o seguiram, mas sua influência estava em toda a região.

Hallownest possui uma capital: a Cidade das Lágrimas. Nela está a síntese da glória do rei, a cidade conta com sistema de transporte, esgoto, sinalização e comércio, uma série de elementos que a tornou essa região como um todo estruturada, inclusive dividida em classes sociais.

Cidade das Lágrimas por Mary Guo.

Porém, no tempo atual do jogo, quando o jogador inicia sua aventura com o Knight, o reino está em ruínas e seus habitantes estão hostis. O que ocorreu em Hallownest foi a manifestação de uma entidade que era venerada pelas mariposas, a Radiância. Esse ser representa a luz dos sonhos. A manifestação de desejos serviu de brecha para que ela infectasse a mente dos insetos, despertando os seus instintos irracionais.

Essa entidade havia sido abandonada pelas mariposas, devido influência do Rei Pálido. Há uma teoria de que a Radiância foi relembrada quando insetos mineradores se depararam com sua estátua no topo do Pico de Cristal.

A Radiância é um ser que vive fora do mundo físico, na realidade dos sonhos. Ela destruiria tudo o que o Rei Pálido construiu, lentamente, a partir dos próprios insetos que eram motores da civilização de Hallownest. Esse inimigo era intangível, não era algo que poderia ser enfrentado fisicamente, por maior que fosse o poder do Rei, pelos seus soldados ou sua elite de cinco leais cavaleiros.

O plano para deter a luz, tornou-se abraçar o poder da escuridão, ou melhor: o vazio, que estava no abismo, nas profundezas abaixo de Hallownest. O Rei Pálido usaria tudo que tinha a disposição para utilizar desse poder para deter o que estava destruindo seu reino.

O vazio seria utilizado para moldar seres sem consciência, os quais não poderiam ser controlados pela Radiância, pois não poderiam sonhar ou desejar. Houve um grande esforço por parte do Rei quanto da Rainha, a Dama Branca, outro ser superior (ambos vistos na lore de Hollow Knight como divindades). Milhares de criaturas foram concebidas, na prática eram seus filhos. As imperfeitas em serem vazias eram descartadas, transformando o abismo em um cemitério de recipientes. Apenas um conseguiu cumprir seu papel: o Hollow Knight.

Ele foi treinado e aperfeiçoado para que pudesse selar em seu corpo a essência da Radiância, e graças a sua falta de consciência, mantê-la presa. No entanto, o jogo entrega dois momentos em que o Hollow Knight não era tão “perfeito” quanto se imaginava. Por mais breve e insignificante que pareça, ele demonstrou empatia.

O primeiro momento foi notar o protagonista (o pequeno cavaleiro), algo que consequentemente o ligaria a todos os outros que haviam sido descartados. A segunda demonstração de afeto foi com o próprio Rei, o qual parecia de fato uma espécie de pai. Mediante essas evidências, mesmo selando a Radiância, a entidade logo daria sinais de que controlaria o corpo de Hollow Knight e voltaria a espalhar sua influência em Hallownest.

O Rei Pálido prendeu o Hollow Knight fisicamente, por meio de correntes, dentro do Templo do Ovo Negro. A entrada para esse lugar foi selada pelas almas dos três sonhadores, que são insetos poderosos que se sacrificaram. A Radiância foi contida por mais um tempo, mas o caos era inevitável.

No tempo atual, o Rei está desaparecido, o seu palácio branco está no mundo dos sonhos, o local físico parece ter sido palco de uma catástrofe. O abismo foi selado, com os diversos receptáculos descartados e suas almas feitas do vazio vagando pelo lugar.

O protagonista Knight, eventualmente, descobre seu propósito como recipiente e sua tarefa de selar a Radiância, substituindo o Hollow Knight. Mas após dominar o poder do ferrão dos sonhos, é possível entrar na mente do cavaleiro e enfrentar a Radiância por conta própria, acabando com a infecção de uma vez por todas.

Resumidamente essa é a principal trama que guia os acontecimentos de Hallownest durante a gameplay. Como um lugar arruinado, o processo de descoberta de Hollow Knight envolve uma exploração arqueológica, de reunir os fragmentos e encaixá-los em um contexto. Apesar de terem muitas pontas amarradas desde seu lançamento, há algumas coisas que ainda ficam no ar, inclusive para que cada jogador tenha uma leitura particular sobre esse mundo.

Radiância e Rei Pálido por MBS150603.

Hallownest: um palco de disputa de ideais

Ideologia é uma palavra difícil de explicar, não é algo tão simples como se costuma ver quando pautada de forma rasa. Na história, há definições mais neutras e outras mais críticas, mas de certa forma envolve conflitos entre conjuntos de ideias, dos quais emergem um poder de mobilização.

Pegando concepções de autores como Louis Althusser e Michel Maffesoli; a ideologia é uma transformação do real por um grupo dominante, um viés bastante racional e prático, não apenas no campo das ideias e que surge de forma espontânea. É uma forma de mascarar um objeto, por meio de uma ideia ou discurso que lhe dá uma aparência, não mostrando o todo.

O que culmina na infecção dos insetos, retornando a sua natureza original, não seria talvez uma manifestação da ideologia da Radiância, pois sua influência na forma desse surto epidêmico vem de seu ressentimento, um sentimento espontâneo. No entanto, não se pode desassociar a entidade ao seu culto por parte das mariposas, e principalmente em propósitos narrativos, a sua ameaça é uma antítese ao Rei Pálido e sua ideologia dominante.

Os “deuses” de Hollow Knight são alimentados pela lembrança de seus fiéis, além disso, das suas próprias práticas culturais nos seus modos de vida. O que o Rei Pálido influenciou os insetos está presente nas construções, em sua noção civilizatória, que duela, por exemplo, com a vegetação do Caminho Verde que é obra da entidade Unn.

O fato desses locais serem ocupados pelo concreto das estruturas, demonstra o quão o Rei Pálido se impregnou na visão de mundo dos insetos de Hallownest. No caso do Caminho Verde, consequentemente os seres da região estão esquecendo Unn. Durante o jogo você a encontra escondida, quase que esquecida.

O Rei Pálido é a razão dominando a emoção, o desenvolvimento racional em detrimento de outras formas de viver. Ele coloca uma máscara na face da realidade: a sua perspectiva de mundo é a ideal para os insetos da região.

A maneira que ocorre a unificação de Hallownest, com as outras espécies tendo de abandonar seus modos de vida, não deixa de ser uma forma de colonização por parte do Rei. O pensamento racional forneceu a consciência para os insetos, tanto que fora das bordas de Hallownest, perdem suas memórias, voltam a agir de forma “selvagem”. A razão e objetividade moveriam o mundo em relação a emoção e subjetividade.

Toda a maravilha moderna que é o reino de Hallownest, enquanto estrutura física e sua ordem social, demonstra essa noção de triunfo da razão sobre o que se tinha até então naquela região. Não há como não traçar um paralelo com o positivismo, a progressão vinda pela ciência, da técnica, que evoluíram a qualidade de vida do ser humano, devido tanto a descobertas que mudariam as práticas de nossas atividades quanto de noções éticas e morais desenvolvidas nas ciências humanas.

Antes do pensamento iluminista, já havia uma retórica de visão de mundo ideal, a religião foi por muito tempo essa máscara para encobrir todas as “imperfeições”, sobretudo após a descoberta de umas manchas que pareciam estranhas no rosto. O Rei Pálido quis sobrepor os resquícios de outros tempos com o concreto de suas estruturas, com estátuas que exaltam sua imagem.

Porém, nenhum período glorioso dura para sempre. O progresso movido pela razão teria o seu colapso…

O pensamento racional que traria mais qualidade aos seres humanos, desenvolveria, por meio das ciências, invenções tecnológicas quanto de ideais responsáveis por atrocidades, o colapso foi o esvaziamento do valor da vida. Teorias sugerem que a destruição do Palácio Branco ocorreu por uma explosão, o experimento com os vessels foi concluído com o descarte de inúmeros seres, não considerados tão vivos quanto os outros insetos.

A volta da Radiância mostra o outro lado na mente dos insetos, o lado emocional e o instinto de sobrevivência. O pensamento racional do Rei Pálido era uma fortaleza em sua mente, e desmoronou. Ele se viu forçado a tomar atitudes desesperadas, ao ponto de sacrificar milhares de seus próprios filhos para contar uma ameaça. Afinal, nenhum custo seria alto demais.

Isso é uma preocupação com seu povo? Não. O Rei Pálido defendia sua glória, o seu legado, a sua visão de mundo, a ideologia a qual construiu Hallownest. Uma vez que falhou, ele se trancou no Palácio Branco, tornou-o inacessível e desapareceu…

Rei Pálido e os vessels descartados por Celebimber.

Mexer com o incerto nos tira do controle de qualquer situação, o Rei Pálido recorreu o vazio para lidar com a ameaça da Radiância. Durante o jogo, ele está ausente, não se sabe se fugiu ou morreu. O Palácio Branco, a sua residência, colapsou, e existe apenas no mundo dos sonhos.

Os jogadores assumem o controle do Knight, o ser que idealmente não deve ter emoções. Existe um preenchimento das intenções do personagem, por parte dos jogadores, diante do contexto e das situações. Apesar da tarefa principal do jogo ser eliminar a ameaça da Radiância, todo o reino já está em ruínas, o apocalipse já aconteceu, o status quo vigente não é mais a disputa entre o pensamento racional e o puro instinto.

Quer dizer então que a mensagem de Hollow Knight seria renunciar qualquer ideal? O personagem que estamos controlando é a representação dessa nossa vontade?

A aceitação interior diante de imposições exteriores

O vazio (void) é a substância escura e viscosa oriunda do abismo, ela aparenta ser a terceira força no meio dessa disputa, no período que se passa o enredo de Hollow Knight. De acordo com um dos pensamentos da Radiância durante a batalha, ela enxerga o vazio dentro do pequeno cavaleiro como o “inimigo antigo”. Questionamentos sobre a civilização antiga, a qual tinha relação com o vazio, comento no texto sobre “nove mistérios ainda não solucionados de Hollow Knight”.

O propósito desse texto aqui é outro, abordar essas informações e teorias sairiam da rota do que estou escrevendo. A consciência da incompletude que pode ser observada em Hollow Knight tem mais a ver com o personagem principal, inclusive a visão do jogador de Hallownest controlando essa figura misteriosa.

O Knight é uma lacuna para o jogador, ele não fala e não reage muito as situações. Como um vessel feito no abismo, foi lhe dado um propósito e ele tem de cumprir isso, pois não aparenta ter pensamento próprio. O jogador só conhece o passado do personagem quando há uma lembrança do dia em que o Rei Pálido escolheu o Hollow Knight como o recipiente perfeito. Essa memória é apenas acessada quando o jogador utiliza o ferrão dos sonhos no reflexo de seu personagem.

O amuleto Kingsoul é adquirido de duas metades, uma pela Dama Branca e outra pelo cadáver do Rei Pálido na memória do Palácio Branco. Após o Knight ter esse flashback, o amuleto se transforma no Voidheart (Coração Vazio). Essa alteração tem a ver com o conhecimento da ligação com o Rei e a Rainha, os principais responsáveis pelo projeto dos vessels, e após o Knight relembrar seu passado, tem consciência da sua natureza como um ser do vazio.

O Coração Vazio é uma parte do Knight, as sombras que lhe atacavam até então, tornam-se pacíficas, incluindo a que você deixa quando morre. No Diário do Caçador, o jogo chama a Sombra de um “eco de uma vida anterior” e o instrui a “derrotá-la para se tornar completo.” A narrativa implica que o protagonista, em certo sentido, fez as pazes consigo mesmo; a Confessora Jiji diz, quando o jogador possui o Voidheart:

“Raro é alguém chegar a um acordo com seus arrependimentos tão completamente, mas você parece ter conseguido isso. Por qual escuridão se deve passar para alcançar tal coisa?”

A parte sombria não está mais escondida na casca branca, e essa aceitação é que faz o Knight conseguir unificar o vazio sob a vontade de eliminar a Radiância no final do jogo.

O vazio é essa força caótica, incontrolável quando você tem o primeiro contato no abismo, porém também é o silêncio absoluto, aquele que causa um desconforto. A personagem Confessora Jiji é capaz de trazer a sua sombra, de onde quer que esteja, pelo custo do item “Ovo Rançoso”, o jogador ganha um tempo que seria ir até o local, ou correr o risco de morrer novamente e perder tudo.

Confessora Jiji resgatando o “arrependimento” do Knight.

A personagem usa o termo “arrependimento” para denominar aquilo que o pequeno cavaleiro deixou para trás. Pensando nessa relação, assim como o Voidheart sendo o Knight aceitando sua natureza, o vazio é o conjunto disforme de coisas aparentemente ruins, a força da entropia, aquilo que queremos por em ordem e escapa do controle. O vazio pode ser um oceano de vergonhas, frustrações, lamentações de toda uma civilização.

O complemento da descrição das sombras no Diário do Caçador, dá a entender esse conjunto de coisas ruins da região relacionados ao vazio.

“Cada um de nós deixa uma marca de algo quando morremos. Uma mancha no mundo. Eu não sei por quanto tempo este reino pode suportar o peso de tantas vidas passadas.”

O primeiro contato com o Void Tendrills revela a natureza caótica e disforme do vazio.

Esses sentimentos costumamos esconder por trás da máscara, mas a luz deixa a sombra no chão, aquilo que queremos guardar ou não admitir de nós mesmos podem escapar, e essas inconsistências fazem parte de quem somos. O caráter negativo atribuído ao vazio, aquela ideia de que se algo sombrio é ruim, tem mais a ver com comportamentos maléficos que nascem dessa angústia de esconder essas coisas e de querer separá-las do indivíduo.

A aceitação do vazio, quando o Knight adquire o Voidheart, é o redirecionamento desse turbilhão de coisas para algo propositivo, o poder do vazio acaba sendo a anarquia perante aquilo que o reprimia: o controle da Radiância.

Enquanto isso, o Rei Pálido, que constantemente se reencarna no seu ciclo de vida como Wyrm, ao encarar tanto com a Radiância quanto com o abismo, é lida com a ideia de mortalidade, de que não há o controle sobre a entropia. Por isso, ele se esconde e foge.

Mesmo que de alguma forma o Rei Pálido acreditasse que seus experimentos pudessem deter a Radiância, o custo de fato foi alto demais. Ele como um Wyrm possui o poder de previsão do futuro, uma capacidade não muito detalhado, e caso ele pudesse ver as possibilidades, pelos eventos que se desencadearam, deter a Radiância em nenhum aspecto significaria uma vitória de fato. Imagine a angústia de um ser que sempre se viu como absoluto em seu ideal de mundo.

Hallownest e toda sua glória ruiu, não apenas enquanto estrutura física, mas social. Os insetos serem suscetíveis aos seus instintos naturais tem a ver com toda a prosperidade do reino não preencher as suas necessidades. Dos trabalhadores nas minas de cristal à nobreza da Cidade das Lágrimas, todos os que foram infectados abraçam os sonhos e desejos dos mais variados.

O experimento do Rei Pálido no abismo buscava um ser livre de qualquer emoção, desejo, até mesmo, de pensamento. Pois nada pode conter tudo que a Radiância representa, exceto o vazio perfeito, os vessels são seres imunes ao conflito interior que é uma fome de necessidades sociais. Talvez isso explique sobre os personagens que não sofreram a influência da Radiância, aqueles que apesar de suas fragilidades, estão bem resolvidos com elas, que fazem parte de si enquanto indivíduos e estão focados em cumprir seus propósitos de vida.

Quirrel e Nailsmith possuem um arco narrativo. Após cumprirem seus papéis no jogo, Quirrel desaparece (ou morre) e Nailsmith pede para ser morto depois de ter forjado o ferrão perfeito.

O vazio: a consciência da incompletude

A força do Rei Pálido e da Radiância são imposições de visões de mundo sobre a realidade, domesticando o comportamento dos seres que habitam a região de Hallownest. O Rei representa nossa tendência em racionalizar o mundo, buscar uma lógica para as coisas em detrimento das emoções, valorizar a objetividade. A Radiância representa o sonho, a nossa forma instintiva de nos relacionar com a natureza, de usar a emoção ao invés da razão, valorizar nossa subjetividade.

O Rei é a luz da razão, do controle para que o tempo seja produtivo. A Radiância é a luz da emoção, de nos entregarmos as nossas sensibilidades e preencher o tempo.

Essa relação me remete aos impulsos racionais e sensíveis descritos por Friedrich Schiller nas suas cartas sobre a “Educação Estética do Homem”, e que nosso desequilíbrio enquanto seres humanos é o resultado de colocarmos um impulso sobre o outro. Hollow Knight oferece em seu enredo uma solução que renuncia esses dois como ideais. No entanto, não quer dizer que o passe uma mensagem niilista, de no final as coisas não têm sentido e não vale a pena investir energia e esperança.

Tal como um processo de individuação descrito por Carl Jung, temos de aprender a conviver com a nossa sombra. Nosso modo de vida não pode ser restrito a um ou outro modelo imposto, pois muito da máscara que temos perante a sociedade é construída pouco a pouco, nos forçamos a ser e pensar de forma que querem que sejamos e pensemos. A ruína de Hallownest é a insistência da ideia de que apenas um modo de vida deve subjugar os demais, um substituindo o outro e mantendo esse ciclo de destruição, tratando de um lugar que lida com as mesmas feridas.

Ascensão do vazio na batalha final.

O texto de Beaumont chega a consideração que Hollow Knight é “um jogo sobre o direito do indivíduo de existir diante das autoridades que buscam apagá-lo”. A nossa raiva perante as amarras externas é nosso desabafo. Enquanto que no panorama de uma parte oprimida em uma sociedade, ao longo dos tempos, a busca de libertação veio de mobilizações e a própria resposta por meio da violência. Trata-se de formas de retirar esse véu que nos sufoca, feito de um tecido macio e com um aroma agradável, uma ilusão de que estamos sendo bem cuidados.

Uma das maiores capacidades do ser humano é conseguir trabalhar com o vago e o insuficiente, nos mover do preenchimento dessas lacunas e a solução de problemas. Mas no fundo, a finitude da vida e a incerteza da morte nos permite criar os significados que atribuímos do que está em nossa volta e de nós mesmo, mais do que qualquer modelo de esclarecimento que nos é apresentado de forma tentadora.

Enquanto jogadores, estamos lidando constantemente com conflitos e incertezas, elas ajudam a mover o propósito do jogo ao ponto em que possamos atribuir o valor de nossas realizações nele. Sem esses dois componentes, o nosso vínculo com a experiência seria esvaziado. A cada videogame, colocamos a máscara de um novo personagem e adentramos nesse mar de situações conflitantes, para sairmos atualizados em relação a forma que entramos.

Videogames, devido ao seu caráter de realidade artificial, nos permite expressar nossas sensibilidades pelos controles, sermos ousados comparados a vida cotidiana. O jogar nos permite abraçar aquilo não conhecíamos de nós mesmos, ou escondíamos, abraçando nossas sombras.

Assim como Schiller atribui o impulso lúdico como nossa capacidade de juntar a racionalidade e sensibilidade, no Hollow Knight, tomamos decisões baseadas em estratégias racionais enquanto nossa sensibilidade abraça o que aquele mundinho de insetos nos quer passar.

Talvez o que a Team Cherry, na figura de William Pellem e Ari Gibson, queira dizer com Hollow Knight não tenha nada a ver com esse texto. No entanto, videogames nos dão essa capacidade de fazer leituras novas da realidade, assim como qualquer outro tipo de obra que entramos em contato. A nossa forma de ver o mundo e como nos relacionamos com ele, abrange essa entropia que faz parte do que somos, enquanto indivíduos, somando as coisas mais sérias, bobas, do trabalho, do passatempo, da aprendizagem cartesiana, das nossas crenças pessoais, para no fim formar quem nós somos.

Do nosso vazio poderoso e sem unidade para o vazio com foco, conscientes da nossa imperfeição.

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REFERÊNCIAS

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Written by Erick Lúdico

Designer | Mestre em Comunicação | Penso, falo, pesquiso, escrevo e etc sobre videojogos 🎮

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