Ellie e a poesia da violência

The Last Of Us 2 é a continuação de uma espiral de irracionalidade movida pela inquietação de alguém que busca incessantemente ter um poder de decisão, só que dessa vez impedida de fora para dentro.

Erick Lúdico
10 min readJun 26, 2020

Durante uma roda de conversa, eu, como ouvinte, escutei o seguinte raciocínio de um cineasta: o texto de um filme é a fotografia em movimento, para conceber a obra não basta apenas montar as imagens em um sequência, mas, assim como na expressão pela escrita, o texto deve ser harmonioso para compor uma poesia.

Esse raciocínio me impactou bastante, era uma síntese que me ajudou a enxergar o que me faz achar um jogo bom ou não. Transportando o raciocínio para o jogo, o texto é a regra, podemos dizer que no videogame é a mecânica.

Essa linha de pensamento talvez seja minha maneira de nortear o turbilhão de coisas que vieram a minha mente desde quando comecei a jogar The Last Of Us Parte 2. O sentimento a respeito da obra como um todo é algo em construção, e esse texto, inclusive, faz parte disso. No entanto, o que sempre vou recordar é a pressa em finalizá-lo, em especial no seu último trecho, uma vontade de terminar tudo que acontecendo… de uma vez por todas.

Após terminar o jogo, fiquei uns três dias buscando opiniões, comparando as experiências e na medida do possível, observando o que da minha impressão negativa do jogo tem a ver com minha bagagem cultural com videogames e outras mídias. Foi unânime ler e ouvir relatos de que a experiência de The Last Of Us Parte 2 é cansativa devido a uma série de emoções provocadas. O meu desgaste, porém, vai na linha da Maddy Myers, que em sua crítica no site Polygon diz que o que o jogo lhe apresentava lhe fazia se sentir mais de saco cheio do que reflexiva.

The Last Of Us Parte 2 é um produto que ajuda a demonstrar um pouco mais o poder transmidiático dos videogames, é uma obra tão cheia de qualidades e nuances que essa complexidade é sim um dos fatores que ajuda a confundir qualquer avaliação mais racional.

Durante e após a jogatina conseguia traçar vários paralelos com jogos como Spec Ops: The Line, God Of War (2018), Undertale, os jogos do Hidetaka Miyazaki e Yoko Taro. Não esperava que para guiar minha visão sobre The Last Of Us Parte 2 bastava olhar o seu antecessor, puxar na memória a experiência que foi jogá-lo pela primeira vez lá em 2013.

O que fazia aquela poesia violenta ter me atingido tão diferente quanto agora? A resposta, que ainda está em construção, é uma personagem: a Ellie.

Em 2013, The Last Of Us foi um jogo muito marcante, uma obra que extrapolou para além do público dos videogames, por conta da construção de seu mundo, personagens e enredo. Por mais engessado que fosse seu gameplay, o manuseio de sua narrativa permitiu que a parte jogável colocasse o jogador como companheiro de Joel e Ellie. Na época em que joguei, aqueles acontecimentos me capturaram, queria a todo custo ajudar os protagonistas na sua travessia de meio Estados Unidos durante as quatro estações de um ano.

Havia uma esperança no meio do apocalipse, só que para acessá-la, precisaríamos nos submeter ao principal verbo dessa poesia: matar. Eu era um cúmplice disso por causa de um bem maior.

Joel era um homem de meia idade, ele foi introduzido como um personagem que passou por uma dor enorme de perder sua filha e, ao longo dos anos, construiu um casco de indiferença para se adaptar àquela realidade hostil. Joel era um contrabandista, a violência fazia parte da sua linguagem cotidiana, sua vida é marcada pela morte, seja de pessoas verdadeiramente más ou que apenas queriam sobreviver.

The Last of Us é um recorte da vida Joel, o seu melhor talvez, pois o fato de proteger uma jovem que serviria de cura para a humanidade, colocou uma camada de nobreza na justificativa de suas atitudes.

Ao longo dos eventos até o momento derradeiro, nenhuma esperança confortava mais Joel que saber que poderia recuperar algo de sua antiga vida de antes: o papel de um pai. O seu egoísmo não se deve apenas em agarrar ao seu recém apego emocional, mas de ter consciência de que tanto antes quanto depois de um apocalipse, o ser humano continuava sendo ser humano.

O mundo forçava Joel a encontrar seu meio de sobreviver, o objetivo principal de The Last Of Us lhe forçou a transportar uma garota na promessa de uma cura. No momento crucial, Joel encontrou a brecha de que poderia fazer a diferença no mundo, no seu próprio. Ele salvou a vida de Ellie, matando várias pessoas que tentavam fazê-la uma cura contra a “praga que assolava o mundo”.

Joel mentiu para Ellie dizendo que havia outras pessoas imunes ao fungo, mas que não havia uma cura. O jogo encerra com ela acreditando nele, cheia de incertezas.

Fala-se muito que a empatia é a palavra chave de The Last Of Us Parte 2, mas para mim, continua sendo egoísmo, mais precisamente, uma necessidade inquieta de tomar uma atitude que tenha algum significado maior, mesmo que ele só exista na cabeça de uma pessoa. O fato de o jogo ter se arrastado além de seu ponto derradeiro, para mim, deixa isso evidente.

Nada mais egoísta é uma vingança que se arrasta destruindo tudo ao redor de alguém. Nada mais triste é ser cúmplice de atitudes irracionais e desumanizadoras pelo simples fato do jogo ter que continuar, temos que ter mais horas de gameplay, temos que ter mais isso, mais aquilo, quando que a própria agente dessas atitudes já havia sido exposta aos resultados de suas escolhas e tê-las questionado.

The Last Of Us Parte 2 cultivou diversidade em sua divulgação, isso gera um frescor na experiência como um todo, mas, o quão suficiente é usar de canetas coloridas quando que o recurso textual de quem escreve é o mesmo de sempre?

Seguir caminhos arriscados é louvável mesmo em obras não bem sucedidas em sua proposta. Porém, quando a personagem que tanto afrontou o conservadorismo dos gamers acaba reproduzindo o mesmo ciclo vicioso que aprendeu com sua figura paterna, me pergunto, o que o Neil Druckmann quer me dizer que ele não tenha dito no primeiro The Last Of Us?

Da Ellie já lhe fora retirada a escolha de ajudar o mundo com sua imunidade. Agora, já mais madura e ciente de uma série de coisas, lhe fora retirada a capacidade de escrever seu próprio texto.

Nós temos um jogo mais bonito, a gameplay possui uma melhora considerável, tem-se uma série de detalhes de narrativa pelos cenários, respostas do nosso avatar ao que está volta, quanto reações dos inimigos, isso tudo é impressionante mesmo. Lembro de ficar impressionado com esforço, e até desconforto, que a Ellie demonstrava em sua face quando matava um inimigo por trás, mas, ao longo do jogo, só foi parecendo incrível visualmente mesmo. No trecho final, que eu falei que estava cansado, via essa mesma animação e no fim das contas parecia só mais uma morte de um inimigo aleatório.

Aí nessas horas não tem como puxar referências, lembro do Spec Ops The Line que no começo o protagonista executava os inimigos de forma mais indecisa, no final do jogo ele dizia com satisfação “kill fucking confirmed”, a animação era mais rápida e violenta. Aquilo era 2012, o estúdio Yager bem mais deficiente em recursos que a Naughty Dog, que em um jogo de 2020 coloca animação diferente de tudo que é coisa imaginável em uma série de contextos.

The Last Of Us Parte 2 é um polimento, um esmero, um trabalho tremendo em cada detalhe, mas em muitos momentos, o que queria era pular trechos de gameplay pois aquilo tudo não tava me dizendo nada. O texto que é o que faz The Last Of Us Parte 2 ser um videogame era o que mais me fazia querer deixar o controle de lado e cogitar zerar pelo Youtube.

Quando aconteceu o primeiro ponto chocante, fiquei bem mal mesmo, o jogo adquiriu um sentido, mas ao longo da gameplay, a narrativa me entregava possíveis ganchos, mas sequer chegavam ao ponto do que era o primeiro The Last Of Us. Os trechos do antecessor era uma construção de engajamento emocional e tudo aquilo era destruído, um baque muito forte.

Enquanto o Joel era o boneco do joguinho que aguentava tudo como uma esponja, até por estar anestesiado a desgraçada desse mundo, o jogador quanto a Ellie precisavam recuperar o fôlego.

Em The Last Of Us Parte 2 acontece uma coisa, o pensamento que vem é “bem, isso é grave”, mas depois a gente vê o que acontece. Uma série de tensões acontecem e se acumulam, mas o que é para acontecer vai acontecer em algum momento, então vou ficando indiferente esperando algo genial no roteiro, algo que a Naughty Dog me acostumou com o primeiro jogo.

Os trechos de combate se tornavam maçantes pois adiava o que de realmente especial o jogo pretendia apresentar, e o que falar daqueles benditos momentos que o lugar tá na sua frente em linha reta, aí acontece alguma coisa do nada, consistindo em um desvio enorme, pois, temos que inserir horas de gameplay.

Um outro grande desvio do jogo são momentos de flashback, que felizmente tornaram-se momentos que me dava um indicativo que havia algum sentido em toda essa jornada. As atitudes da Ellie em The Last Of Us Parte 2 se justificava em sua vingança, mas o que pairava no ar era: ela tem ciência ou não do que o Joel fez no final do jogo anterior? E no meio de uma mistura de flashbacks e momentos atuais você tem essa resposta.

Chegamos então a um momento chave de confronto, onde a partir dali o jogo forneceria o inesperado, mas, temos uma… pausa.

O jogo entra em um segundo momento, que por conta de um indicativo no comecinho, algumas coisas não seriam surpreendentes. Existe um ponto de reviravolta, mas minha primeira reação foi associar a outros jogos que já utilizaram esse recurso antes. Imediatamente já dava para entender a proposta, mas se esse trecho está sendo maior que esperava, é porque tem alguma coisa muito especial para mostrar não é mesmo? Pior que não, pois só deixa redundante o que o jogo queria mostrar.

É complicado entrar em detalhes dessa parte, pois é o ponto diferencial para muitos jogadores que forem jogar. Na verdade, é a construção narrativa mais coerente do jogo que inclusive faz questionar a qualidade anterior, especialmente o que acontece, e mais complicado ainda, por que o jogo foi montado dessa forma? Por que se estendeu tanto?

O ponto chave que era para o jogo me entregar o brilhantismo, depois de passar tantas horas em trechos que estava cansado de jogar, só adaptou o texto de sempre que ao invés de desatar o nó, ficou um emaranhado disforme. Fiquei bem indiferente a tudo, o que valeu dali em diante era justificar meu investimento financeiro no jogo e ter algo para opinar sobre a obra por completo.

Ao pensar sobre The Last Of Us 2, vejo um jogo deslocado do tempo e espaço. As vezes lembrava de Game Of Thrones, parecia um projeto com a intenção de realmente despertar o choque dos jogadores, as vezes penso que houve uma intenção proposital de geração de reacts na Twitch. No fim das contas o que mais gostei de TLOU2 foi a coragem de inserir diversidade e política de forma escancarada em um título AAA, que apesar de não ser mais que a obrigação, tem que ter um jogo de cintura nesse terreno arenoso que é o meio dos videogames.

Mas da experiência si, foram as breves poesias com significado, sobretudo nos momentos em que a Ellie interagia com o Joel, um pouco com o Tommy, a relação dela com a Dina. Falava muitas vezes em voz alta que queria mais museus, que os acontecimentos me fizessem ter uma perspectiva melhor sobre personagens e que eles não fossem meras cotas para um diretor pagar de progressista.

A Ellie em alguns momentos, seja nos flashbacks, quanto principalmente no ponto chave que citei, deixa transparecer o saldo de toda sua jornada até então, um aprendizado diante das consequências de suas ações. Até que entramos em uma luta, porque afinal de contas é um videogame e tem que ter um conflito físico. A Ellie boneco de joguinho está lá materializada, desempenhando seus textos de mirar e atirar, golpe no botão quadrado e imobilizar por trás no triângulo.

Quando a gente aperta o botão mais subutilizado do controle do Playstation 4 para tocar violão, temos um texto que diz em poucos minutos bem mais do que incessáveis sessões de batalhas.

A Ellie apesar dos laços, tendia a ser uma antítese do Joel, o final do primeiro The Last Of Us deixa essa margem no ar. O que dá o propósito do enredo é algo compreensível, mas ela demonstra um pesar mediante das atitudes que toma ao longo de sua jornada, e no momento crucial, ela vê o outro lado da moeda em resposta a sua violência, uma forma de despertá-la, de perceber que se ela achava que era dona de suas atitudes, na verdade, estava apenas reproduzindo um ciclo vicioso.

A Ellie não tem responsabilidade da redundância que se torna The Last Of Us 2, assim como lhe fora tirada a escolha de se sacrificar para uma cura, aqui ela só foi mais uma engrenagem que serviu do mesmo papel de diversos Joels antes dela, só que pintada de arco íris. Ela não teve escolha, porque a indústria dos AAA tem que continuar com os mesmos ciclos viciosos.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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Erick Lúdico

Designer | Mestre em Comunicação | Penso, falo, pesquiso, escrevo e etc sobre videojogos 🎮